Por Pedro Simões (In memoriam)
Veio-me a palavra: Macaibística. E as associações de ideias (ou rimas?) - probabilística, infortunística, logística - tantas, que formariam um cortejo maior que o beija-mão das autoridades civis e eclesiásticas. Talvez a expressão Macaibística indique a ciência, o estudo, os fundamentos, o conjunto de conhecimentos que caracterizem e definam a raiz "Macaíba".
Descubro que a palavra Macaíba, designa uma palmácea espinhosa, que produz um fruto carnudo, e que é encontradiça em todo o território brasileiro, chegando até à América Central. Satisfaço-me com a explicação, mas abandono, temporariamente, a alta, esguia e exuberante palmeira, para pesquisar as suas consequências toponímicas, pois quero tratar da cidade de Macaíba, antes conhecida como Coité, este, um arbusto que também produz frutos.
Cogito que a cidade tanto cresceu que o arbusto tornou-se insuficiente para descrevê-la, e então a vila se converteu em árvore, altaneira, rija e pujante graças ao empreendedor Fabrício Gomes Pedrosa que entendeu a metáfora e propôs a mudança. Sempre que vou à Quinta dos Pirilampos o meu paraíso incrustado em Tabatinga, no território macaibense, escolho o trajeto da BR por comodidade. Não que a estrada esteja em condições trafegáveis, mas é asfalfada, circunstância que nos transmite uma impressão de segurança e conforto. De fato, aqui para nós, apesar de todos os perigos, sinto-me tentado a ir pela estrada que segue pela ponte das lavadeiras, enfrentar a curva da morte, o Peixe-Boi, pelos Guarapes, até chegar na Mangabeira, para evocar meu tempo de menino dos anos cinquenta.
Entre o incerto e o duvidoso, optei por uma terceira via, inusitada, alguns até entenderão como despropositada, mas vocês perceberão o porquê dessa reviravolta.
Rumo para Macaíba numa jangada que aluguei em Muriú. Chegando na boca da barra, tomei o rumo das cabeceiras do Potengi pelas quebradas do Jundiai. Aporto no velho cais, onde já me aguardavam alguns amigos, e me dirijo às Cinco Bocas, na companhia desses tais, Fabrício Pedrosa, Severo, Alberto Maranhão, Auta de Souza, Tavares de Lira, Otacílio Alecrim, Henrique Castriciano, Olímpio Jorge Maciel e o velho alcaide pessedista Alfredo Mesquita Filho.
O objetivo do cortejo, menos numeroso que as possibilidades das palavras rimosas que invoquei no início do texto, era estabelecer os fundamentos da cidade, a sua geografia sentimental, o futuro e, porque não, sacudir um pouco da poeira dos antanhos para acarinhar e acender o lume do coração macaibense.
Fui moderador da reunião. Ouvi atentamente todos os ilustres participantes, cada qual se superando nas loas e elegias à cidade-árvore, e, concluídas as intervenções, convidei o velho líder Mesquita para assumir o meu lugar para, mesmo sendo forasteiro do Ceará-Mirim, apresentar uma proposição.
Perguntei se algum deles já havia lido "Trilogia do Cotidiano", "Pisa na Fulô", ou "Macaíba de seu Mesquita", do jovem Valério Mesquita. O velho Alfredo, entre a satisfação e o orgulho, levantou a mão. Auta de Souza o secundou, confessando haver realizado uma leitura astralina dessa obra e fez questão de registrar a gratidão pela solidariedade do autor quando demoliram a sua casa. Atrevi-me e pedi licença para algumas considerações.
Esclareci que nesses e em outros livros, o macaibense sempre macaibense Valério, ofertava-se à sua terra, arrancando-a de um anonimato ruinoso e decadente, para exibi-la viva, vibrante, original, como desagravasse uma falsa imagem que se tem de alguém colhido pela velhice, testemunhando, através de uma velha foto, a fisionomia real e imorredoura que ainda pode ser distinta se comparada aos sinais contemporâneos. Um procedimento mágico e simples em que o investigador, movido pela imaginação e pelo amor, vai afastando as rugas, a calvície, os olhos vazios e a boca quase vazia de dentes que compõem o molde real e então como que captura os sinais de vitalidade da perdida juventude escondidos pelo tempo. Que de fato nos apresenta uma ilusão de ótica.
São relatos bem humorados que não alcançam o desrespeito nem a gozação, mas que revelam um espírito desarmado e feliz que confraterniza o humanismo dos seus quase-personagens. E uma declaração de amor e de saudade, um preito ao seu tempo de aprendizado da vida em que foi iniciado por mestres e mestras tão experientes e tão plenos de amor à existência.
Em seguida, Olimpio Maciel também manifestou o conhecimento e o reconhecimento do lavor do seu conterrâneo em favor da pátria aldeada. Otacílio Alecrim estava desolado. Não, não o conhecia, mas tivera conhecimento do seu empenho pessoal para reeditar as suas obras. Fabrício, o dínamo macaibense, estaria comprometido com outras fundações. Augusto lamentou a falta de tempo, envolvido nas suas aventuras aéreas. Alberto Maranhão alegou o seu envolvimento com as questões políticas e Castriciano com alguns projetos educacionais. Prossegui.
- Tenho uma proposta para a qual peço a atenção e a devida consideração de Vosmecês. Que Valério seja declarado "Benemérito de Macaíba", com a chancela desse seleto grupo de ilustres macaibenses, que, por todos os títulos, são os expoentes da cidade, aqueles que lhe deram aprumo e norteio.
Auta de Souza e Olímpio Maciel passaram a relatar as iniciativas do homenageado em favor de Macaíba e, depois dos relatórios, li alguns trechos da "Trilogia", exatamente aqueles que mais diretamente expressavam o amor incondicional e irrestrito do jovem macaibense à sua terra, as suas preocupações e temores, as suas indignações e as suas esperanças. A moção foi aprovada por unanimidade e eu, apenas um escrevinhador-cambiteiro do alagadiço da terra dos canaviais, fui encarregado de lavrar o relatório com as conclusões da reunião, missão que aceitei com prazer, advertindo, todavia, os participantes, que o faria do meu jeito, sem protocolo, pompa ou circunstância como sói acontecer com as almas alforriadas da escravidão dos paletós e gravatas, dos entretantos e considerandos.
Alfredo Mesquita me abraçou com muita efusão e me disse para transmitir ao filho o orgulho e o amor de um pai estremecido pela saudade e pela gratidão. Que perseverasse, porque Macaíba era maior que qualquer querela, circunstância ou reparo. Que se lembrasse quantas vezes, ele, o pai, com uma espinha entalada na garganta, tivera que degluti-la a seco, a troco da paz familiar ou do interesse de sua cidade.
Disse-lhe, em resposta, que o seu filho era agora Conselheiro do Tribunal de Contas e havia-se retirado da arena da política partidária militante, conformando-se na trincheira do jornalismo. O velho ficou pensativo, mas não demonstrou, na sua expressão, qualquer ricto que pudesse ser objeto de interpretação. Não ouso avaliar o seu silêncio, até para concordar com as minhas aulas de direito quando dizia aos alunos que o ditado "quem cala consente" é um engodo jurídico. De fato, quem cala não diz nada.
Com passos firmes, acompanhou-me até o Cais, olhou em grande angular a sua terra querida e desapareceu numa neblina sabendo a fios de prata. Passo ao meu relatório.
E começo dizendo que Valério é uma instituição. Ultrapassou o limite do individual e do coletivo. Instituiu-se. Plantou-se e enraizou-se duplamente macaíba, árvore e cidade e triplamente folha, fruto e flor nas variações do Coité, da Macaíba e no advento da Valeriana.
Ninguém o excede no amor à sua terra, nem mesmo Jorge Fernandes, o Drummond de Itabira, ou Mauro Mota e Capiba do Recife. Talvez o iguale o Mestre Cascudo. Eu disse talvez, porque o meu guru universalizou-se, não tem mais eira nem beira, é de domínio público. Nilo e Edgar, cidadãos beneméritos do meu amado Ceará-Mirim, guardaram um amor telúrico, emotivo, mas construído à distância, nos ontens da infância, pelas veredas da saudade.
Em direção oposta, o meu colega-amigo de infância do Marista, Valério Mesquita, fundeou-se nas ribeiras do Jundiaí e aí deixou que a sua âncora se incrustasse no leito do rio, irreversível, inamovível, definitivamente presa, sem direito a alvará de soltura ou possibilidade de habeas corpus, porque o paciente não pretende se libertar. Ao contrário, mais e mais se enreda nas teias da doce e caprichosa prisão patrocinada pela amada.
A diferença entre este macaibense e outros amantes de suas respectivas aldeias é mais visível quando se constata que Valério viveu toda a sua vida na sua cidade. Aqui e ali, permitindo-se a certas licenciosidades com a vizinha Natal, mas fidelizado à sua terra. Conviveu com o seu povo, sentiu o cheiro da cidade, encheu os olhos do seu casario, participou do trivial e do cotidiano, foi bem-amado e mal-amado, sorriu, chorou, foi amamentado e desleitado. Valério é parte de Macaíba, não um seu destaque, como as ilustres personalidades aldeãs famosas e arribadas que, tal como o pássaro do Baghavad Gita, mergulham e não molham a plumagem. Ao invés, ele se envolve, participa, briga, realiza, pacifica, frustra-se com os pleitos desatendidos, vibra com as realizações. Respira Macaíba. E mergulha por inteiro no Jundiaí, molhando toda a penugem.
Estica as pernas e vai às ruas do Pernambuquinbo, do Comércio, Dr. Pedro Velho, da Cruz, do Umarizeiro, do Gango... Abre os braços e recebe a criança apadrinhada, o abraço do esmoler satisfeito, a noiva para entrega ao consorte, o capão para o almoço, a cuia de feijão verde, o abaixo assinado, a carta anônima difamatória, o escapulário, as rezas das novenas, o retrato da padroeira, o caçuá de manga, a cesta de cajus, a “lapada” de cana de um Zé qualquer, muito importante.
Abre os olhos e se depara com o sol mais ensolarado das manhãs nascentes de verão, com os luares sonsos e acolhedores à beira do rio ou sob o abrigo da ponte devassa, a policromia de uma cidade que vive constantemente luminescente fletindo-se sobre a paisagem. Descobre a diferença entre ver e enxergar, num, os olhos fotografam apenas, noutro, as retinas comunicam à memória a necessidade de registro para toda a vida e ao coração, o prazer da beleza. Macaíba é o seu rosário, o seu lençol de cheiro, a água de beber da quartinha amanhecida, a pátria natural e afetiva, o seu chão, leste e oeste, horizonte e infinito. Ponto de fuga. Sonho e pesadelo. Vá lá! Que seja um lugar comum, mas é verdade verdadeira: seu oxigênio. Tanto que, afastado do cotidiano de Macaíba, o ar fica rarefeito e Valério ressente-se de mil e uma patologias das vias aéreas. Então, embarca no Pax de Augusto ou na luz mística de Auta e sobrevoa a cidade, sobrevindo a cura. Macaíba é seu xarope, bálsamo e vitamina.
E tanto amor não distingue macaibenses e macaibeiros. Alcança os dois, porque o amálgama é o amor à terra. E porque dizem que é melhor amante aquele que fez a opção de filiação do que o que não teve alternativas senão render-se à fatalidade.
Tem apenas duas queixas urbanas recorrentes: a demolição do prédio onde nasceu Auta de Souza, com a inevitável queda do jasmineiro ao pé do qual a doce poeta cantou os seus versos; e o não ter comprado o casarão onde morou o seu avô e ele próprio, ainda menino. E um reparo somente: de um Prefeito que quis mudar o nome do conjunto habitacional que leva o nome do seu pai, num ato revanchista mesquinho e desmotivado. Fato já superado graças às transigências de parte aparte.
Aliás, o benemérito macaibense é mestre na arte da negociação, da conciliação e da transigência. Desde que não lhe pisem o calo de estimação - a sua dignidade pessoal, a sua honra, únicos patrimônios que amealhou vida inteira. Sem esse aceiro, o fogo se espalha e as brasas incendeiam o rastilho da porção Mesquita. Quem nem aquela provocação infantil interiorana dos cuspes simbólicos: t’aqui sua mãe e t’aqui a minha. Pisasse na mãe do outro...!
Mas as compensações são maiores que as desfeitas, e ele prefere pensar naquilo que acresce ao seu amor pela terra natal, desprezando o que o afasta, porque Valério tem a mesma estatura moral que a sua envergadura física e a mesma maturação dos cajus veraneados. Disse, certa vez, que há um tipo de conhecimento que nos credencia a afirmar que somos os melhores do mundo: o nosso dialeto, a nossa aldeia. Ninguém no mundo nos supera nessa ciência. Por isso insisto tanto para que os meus filhos se dediquem à língua brasílica e à história, geografia e geopolítica do nosso país.
Louvado nesse raciocínio, eu posso assegurar que ninguém conhece mais Macaíba que Valério, e por isso ele é a maior autoridade do mundo na Macaibística. Não me cochichem Alecrim, Tavares, ou quem quer que se pretenda ser. O diferencial valeriano é o amor e a vivência. Pensem num amor que se realiza à distância, que preserva o amante dos inconvenientes do dia-a-dia. Amor assim pode eternizar-se, mas não é verdadeiro, não há irmanação. Acaba-se no primeiro mau cheiro. Ama-se mais o que se vê refletido no objeto amado, além das virtudes e das excelências, nunca o negativo que habita todas as coisas. O lado gauche e no ir de ser de cada criatura humana. Valério conhece e vê Macaíba pelo direito e pelo avesso. O aroma e a inhaca. As grandezas e as pequenezas. As graças e as desgraças. Os bons e os maus tempos. O progresso e a decadência. Vive Macaíba como quem vive o seu amor com mulher de virtudes e temperanças medianas, defeitos e deslizes também meãos. Sem alardes, sem ostentação, sem glamour, nem juras ao luar. Ali, no corpo a corpo, no mano a mano, de pés descalços, suado, descabelado, comendo com as mãos os ossos da galinha roubada no sábado de aleluia. Com farofa da graxa dela mesmo. Picado pelas mesmas muriçocas, alcançado pela falta d'água e de saneamento, sinal ruim da televisão, calor atroz na sessão do cinema desconfortável e sombrio, roupa lavada com anil e batida nas pedras do rio, gole de zinebra com umbu-cajá sentado num impoderável tamborete na casa de mulher-dama.
Ouvir as arrelias e arengas dos populares amigos. Dividir o pão, literalmente, e pagar o caldo de cana no mercado. Pelejar com os amigos da opa. Tirar os pequenos contraventores da cadeia. Ir à feira como cidadão comum, catando os versos dos repentistas e cantadores, experimentando a farinha e o picado, o fubá recém-pilado e a goma fresca para a tapioca e o grude.
Só quem vive esse cotidiano, em tempo real, pode dizer que conhece a sua aldeia, porque o tempo não para, não estaciona nas memórias, nem nas lembranças fugazes. Há, sim, o tempo virtual das recordações. Esses momentos servem à individualidade, em fuga do inferno ou de retomo ao paraíso, ou ainda, ao intelecto à procura de um tema literário. Mas não marcam com fidelidade de origem, como digital ou pedigree, a fixação epidérmica do amante em relação à sua amada. Olho Valério e apesar de enxergar nele o facies do pai, Alfredo Mesquita e de alguns outros espectros alheios ou de genéticas ancestralidades, consigo ver também, encorpado nele e ao seu redor, azinhavrado numa simpática algazarra, os "Zés" do seu chão: Zé da Bomba, Zé Jeep, Zé Caíco, Zé Mimoso, Zé Batata, Zé Deca, Zé Buchudo, que bem poderiam ser personagens de outro Zé, o Conde, de uma Caruaru por ele glorificada e imortalizada no "Pensão Riso da Noite". Os boêmios e os "bocas do inferno", gente simples, carne com osso e pelanca, no entanto iguarias de primeira, temperadas e cozidas no fogo brando do coração Valeriano.
Vejo nele um gentil-homem, um fidalgo caboclo, sertanejo na sua compreensão mais abrangente, saído do romance armorial de Ariano Suassuna: valente, decidido, decente, justiceiro e perdidamente compromissado com a sua terra. Se pudesse fazer outra proposição aos ilustres macaibenses, os já encantados e por isso mesmo mais influentes ainda sobre a população descendente deles, seria para que se instituísse um Senado com jurisdição municipal e se criasse apenas um único cargo de Senador, vitalício, que só pudesse ser provido por Valério, extinguindo-se após sua morte.
Ou que Macaíba passasse a se chamar "Valeriana", outra espécie vegetal (valeriana officinalis), também conhecida como erva-gato, recomendada para acalmar acessos de histerismos, espasmos, epilepsia, convulsões, neuralgias e dores de cabeça persistentes. Calmante para os nervos e estabilizante emocional.
No porte, a Macaibistica acusaria um retraimento da cidade á condição de menor porção vegetal, depois de ter sido promovida de arbusto a árvore. Mas a sua redução teria muito mais valia, como já se verifica, correndo em sua defesa o dito popular assacado nas disputas de brigas de rua: o que passar de mim é podre, ou nos discursos de efeito: são os pequenos frascos que contêm as melhores essências. A terapêutica municipal traria inúmeras vantagens e compensações.
Sobretudo nas refregas e quase carnificinas do período eleitoral. Luta de canibais e de xipófagos, coisa para ser narrada por Homero, o grego, ou pelo americano Stephen King. Fratricídio, parricídio. Traições, infâmia, tresloucamentos. Melhor, portanto, a convocação para o chá de valeriana.
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