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A PASSAGEM DA NOITE

As águas do rio da reminiscência atingem novas margens e aprofundam o porão da memória.

26/07/2023 às 15h18
Por: adrovando
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A PASSAGEM DA NOITE

Valério Mesquita*

 

“Siga o rio. O rio conhece o caminho”. É o estribilho de uma antiga

canção do faroeste americano. O leito caudaloso da memória me conduz às vozes

que vêm de longe. Na dor acumulada e na fadiga rotineira, ensaio os meus passos

no caminho das minhas perdas. Revejo os meus personagens. Escuto o vento nas

folhas e o piano da chuva no telhado como se não tivesse ainda baixado a cortina

da minha infância em Macaíba. Os passos enérgicos do meu pai e a fragrância

suave de minha mãe me parecem tão nítidos, no corredor da memória, como se

permanecesse ainda aberta a última porta daquele tempo. Diante do que possa

sugerir esquisitice essa ressurreição de ambiente, impetro uma medida cautelar

possessória, uma manutenção de posse do espaço perdido tal qual um

desesperado náufrago da complexa realidade de hoje.

 

Nada disso significa nostalgia piegas. Apenas, me interessa o

imponderável e o mistério dos desencontros humanos. Enquanto houver silêncio,

solidão, tragédia, medos secretos, jamais deixarei de perseguir os significados.

Além da visão, da memória, dos sonhos, tenho os meus pressentimentos. Às

vezes, no recolhimento, surgem-me os sons longínquos da antiga amplificadora

municipal, “a voz de Macaíba e o seu musical variado” dentro da noite calma e

estrelada daquele cenário mítico. A mente se povoa de mortos e de vivos que

vagam e que passam. O velho campo de futebol, entre as ruas 30 de Março e

Campo Santo, me restitui os ídolos desaparecidos. Craques comuns da vida pobre

da cidade, mas que se igualavam para mim aos astros do Maracanã dos idos de

Zizinho, Danilo e Ademir.

 

As águas do rio da reminiscência atingem novas margens e

aprofundam o porão da memória. O Cine Teatro Independência dos filmes do

Gordo e o Magro, dos Três Patetas, de Chaplin, de Abbott e Costello além dos

faroestes que não se repetem mais; a praça Antônio de Melo Siqueira dos

primeiros alumbramentos, dos passeios, do banco do namoro, do coreto, tudo

como qualquer lembrança de homem comum do interior; a rua do Vintém, do

Cajueiro, as Cinco Bocas, a praça da Matriz, o cais de pedra do rio Jundiaí, as

jabuticabeiras da Lagoa das Pedras, o Pernambuquinho; o Gango (o baixo

meretrício), de todas proibições à hora do crepúsculo, os antigos ônibus da linha

Macaíba/Natal que me consumiam diariamente a farda estudantil, enfim, o

universo humano das figuras populares, coração e alma de Macaíba que não pára

nunca. Na noite de minha vida ainda assisto, com nitidez, à passagem do meu rio

porque eu continuo a ter os meus personagens.

 

Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória

olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo

perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais

do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás

dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência negro mistério do tempo

da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as

fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na

contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne,

cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes.

 

Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali?

Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de

engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da

memória?

 

(*) Escritor.

 

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