Por Giovanni Rodrigues
Ventos varriam a cidade ainda há pouco. Agora restos de um inverno tardo. Sequer os deuses suportam esse tempo. Simulacro de calma envolve a paisagem ondulante. E os ventos varrem oceanos.
Tenho comigo essa lista de filmes. Imagens, sensações, sentimentos, memória. Sonhos que iluminaram as telas da cidade, e se misturaram aos nossos desejos, às nossas vidas, trazendo a substância incomum ao cotidiano banal.
Ali, nos filmes: esse choque que perdura, a liberdade que não foi comprada, o aguilhão da consciência sempre incomodando, a vida que se busca na reminiscência, ou na aventura, ou no patético, o deslocamento existencial, a guerra de classes, o direito ao amor.
Tudo está ali nos filmes, o que de melhor o nosso espírito produziu: desencanto e revolta, dor e esperança. Essa substância do tempo que preenche nossas vidas, fluindo do écran, no desconcerto chapliniano, na brutalidade do vazio em Bergman, na condenação à solidão em Stevens, na esperança radiante de Eisenstein, no mundo que se constrói - e fenece - em John Ford, na busca da humanidade em Resnais. Esse encontro, para além das fronteiras, um recomeço de nós mesmos, sempre; no delírio quente das imagens, na vertigem do tempo abolido, na paixão comum pela vida que resplandece em gestos de outras pessoas, de línguas diferentes, em lugares distantes, de quem ao fim somos comparsas, cúmplices, quase íntimos. É essa marca que o cinema traz: somos iguais, as nossas dores e esperanças são as mesmas.
Mas somos desse tempo re-partido. Deixamos de olhar na face do nosso semelhante, de ver a distância que nos separa, e a esperança secreta ou o grito que possa nos unir.
Nossos tempo modernos. Máquinas quentes cortam dunas, jet-skis cruzam o espaço, automóveis correm na noite: easy riders. Cada um aposta no futuro, certo de saber a regra do jogo. Mas por precaução nos concedemos esse último êxtase. E a estupefação, a exarcebação desse anseio, esse triunfo equívoco.
O tempo que não espera, e uma cidade a crescer. Inesquecível aquela cidade varrida pela poeira na última sessão de cinema. Poucos se lembram.Era uma
despedida. Até um tempo futuro. Moderato com semifusas, quartifusas, faíscas. E os anos passaram nesse frêmito. A doce vida tornada obsessão.
Precisamos de tudo novamente, varrer o silêncio das ideias, juntar pensamentos, decifrar mensagens, a atmosfera densa e vivaz que prenuncia o ataque, e mergulhar na respiração da máquina do mundo. Moto, suspiro, síncope. O écran pulsante do planeta. Pois se todos os homens do mundo...
Podemos resolver o pó do tempo, para os dias melhores que virão, invadindo as sombras dessa alegria. Trazer a todos de volta, para nós que seremos outros. O eterno solitário que se vai, uma mulher que se revolta, aquele nada sempre a explodir no seu presente, a felicidade que não se compra, esse corpo, esse corpo que cai no meu receio, e aquelas meninas ao relento.
Terra dos homens. Nem Deus nem o Diabo. Quixote se avizinha. Somos nós, contudo. Aqui, presentes, para o julgamento dos vivos e dos mortos. Talvez nos encontremos no ano passado em Marienbad.
E abriremos as janelas, a cidade curva do planeta, para o universo em reconstrução, em cada face descoberta, cada imagem confrontada, cada esperança derramada desse facho de luz que atravessa a matéria chamada celulóide
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