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DO QUE EU GOSTAVA E DO QUE EU TINHA MEDO

Tinha medo de dois rapazes da alta sociedade que eram bem baixinhos (eu, bem pequena, era maior que eles) eles se vestiam muito bem com ternos, gravatas, chapéu e sapatos bem envernizados.

08/12/2024 às 12h21
Por: adrovando Fonte: Maria de Lourdes Cavalcanti Nogueira (*1921+2000)
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DO QUE EU GOSTAVA E DO QUE EU TINHA MEDO

Minha gente

Não estou na lista de intelectuais nem de jornalistas, também não tenho bagagem para isto. Porém, peço permissão para escrever alguma coisa que eu vi meus pais falarem e muitas e muitas que eu tomei conhecimento.

Todas as crônicas que leio no jornal me emocionam muito porque encontro gente minha, envolvida. Aqui, eu vou fazer uma colchinha de retalhos de saudades.

Eu tinha medo quando Cambraia gritava os jornais. Ele percorria as ruas gritando com voz estridente pelo próprio apelido:  Caambraaaaia!.......  Isto existiu mesmo. Não sei o porquê desse nome - talvez porque ele era preto e a cambraia tecido, só tinha bem branca.

O Barrão 70: uma pessoa afogada na ilusão da vida; vivia perambulando sem lar e sem nada. Muito sujo, pois não trocava de roupa. Andava com um grande saco de estopa nas costas. Não pedia nada, nem agredia ninguém. Porém, toda a roupa que se dava para ele trocar, ele vestia por cima da outra (acho que os pais faziam terror para as crianças se aquietarem).

Também tinha medo do Papa-figo. Este, nunca vi, nem sei dizer nada sobre ele.

Tinha medo de dois rapazes da alta sociedade que eram bem baixinhos (eu, bem pequena, era maior que eles) eles se vestiam muito bem com ternos, gravatas, chapéu e sapatos bem envernizados. Eram intelectuais e um deles tocava piano.

Gostava de ver Bernadete, uma professora que ficou doente da cabeça. Antes da doença, ela passeava muito e gostava do carnaval de Pernambuco. Por isso, quando enlouqueceu, vestia suas saias bem godê, sapato tênis e com uma sombrinha aberta, cantava e dançava os frevos na rua. Tinha uma voz linda demais. Os senhores que a conheciam lhe davam algum dinheiro, com muito respeito. Ela procurava-os sempre no Cova da Onça, no Natal Clube e nos Cinemas Politeama e Royal. Todas as pessoas que ela conhecia, chamava pelo nome. Meu irmão, José Aguinaldo, achava que dava sorte se encontrar com ela.

Outras coisas que eu gostava: cavaco chinês, que por sinal, no tempo, não mudou em nada; sorvete feito na hora, numa caixa de madeira com uma manivela rodando - eu sei que o sorveteiro contornava a caixa por dentro com gelo picado e muito sal, para conservar. Mas, já tinha as caixinhas para servir!

De comida de rua era oferecido alfenim doce, puxa-puxa, cocada, cavaco chinês, doce seco (era uma tapioca bem dura com recheio bem ardoso) e geleia de coco que ainda existe (cortavam os pedaços no tabuleiro); caldo de cana moída na hora e aluá de abacaxi.

Ainda lembro coisas que me davam muito medo.

Tinha medo de ver passar enterro dos indigentes - eram levados numa rede num pau bem forte (um caibro de casa) onde se pendurava um punho num lado e no outro - tudo coberto.  Escolhiam para carregar a rede com o morto, os doentes mais calmos do Asilo que era dirigido por um senhor de muita formação e competência, Cândido Medeiros, que deixou uma família muito grande, pessoas importantíssimas que hoje, os últimos rebentos estão vivos e podem endossar o que eu estou dizendo. Só em conversa podemos pesquisar mais sobre estas criaturas. Umas se foram bem novas e outras ainda estão vivas e inteligentes, honrando o nosso Rio Grande do Norte que está muito sofrido.

Voltando a falar dos enterros dos indigentes - os quatro homens tomavam um pouquinho de cachaça, saíam de dupla para se revezarem. Por vezes, andavam bem depressa, certamente por causa do peso e para chegarem logo.   Eram vigiados por   dois enfermeiros bem fortes e levavam para o cemitério do Alecrim. Neste tempo, era o único, por que Natal terminava    por este bairro e ia até onde as lavadeiras lavavam as roupas - no rio das Quintas. Elas levavam uma grande trouxa de roupa amarrada nas quatro pontas da toalha. Levavam também uma bacia de alumínio emborcada em cima. A lavadeira da minha casa, só almoçava de tarde quando trazia aquela roupa tão cheirosa. Eu costumava jantar com ela. Mamãe fazia o prato e deixava no forno do fogão - um tal fogão inglês à lenha. Até tapioca se fazia na chapa. A comida era bem quentinha.

Então, a lavadeira com as palmas das mãos bem brancas e engelhadas do frio da água do rio, fazia macaquinho de feijão com toucinho, para mim. Quando mamãe via, ai de mim!...era um castigo certo!

Para não apavorar muito os leitores vou descrever os enterros dos ricos. Tinha um bonde preto com cortinas pretas e flores, certamente alecrim cheiroso. O cortejo era a pé - por vezes, aparecia algum carro tipo Ford W8.

Conheci bem de perto um senhor muito importante de nome João Leandro que morava na rua da Estrela, onde morávamos. Tinha a sua oficina mortuária em casa, ao lado. Trabalhava muito a noite, quando era caixão de rico. Meu pai, era muito gaiato e dizia assim: “hoje é noite do dinheiro e do martelo”!... As cores dos caixões eram preta, roxa ou branca (esta, só para moça donzela). Os pequenininhos eram azuis, muito enfeitados de dourado ou prateado. Não existiam urnas de madeira.

Nesse tempo, com tudo tão calmo e com segurança, as crianças brincavam nas calçadas. Então, numa noitinha, eu e outras crianças vizinhas, estávamos brincando de “tica”. Um menino grande gritou: “olha o papa-figo!.... A gente saiu numa carreira tão desenfreada que entramos na primeira porta aberta - era o portão da tal oficina. Foi então que nos deparamos com os caixões enfileirados de um lado e do outro. Os gritos uuuuiiii, aaaaiii, foram de arrepiar!  O   senhor João Leandro apareceu e expulsando todas, disse: “vão na frente que eu vou atrás para dizer a seus pais que, se ele não der educação a vocês eu vou dar!” A turma ficou chamando-o de “professor caminho do céu”. Isto tudo, muito escondido, pois não tínhamos maldade nem coragem.

 

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